A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057,º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.

destaques dr

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2021

Sumário: A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057,º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.

PROC 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A

Acordam, em pleno das secções cíveis,

No Supremo Tribunal de Justiça

I – Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Sotavento Algarvio, CRL, instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum contra AA pedindo a declaração de que é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra E, correspondente ao rés-do-chão, primeiro e segundo andares do prédio urbano com entrada pelo n.º 0 da Rua…, destinada a habitação, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida…, n.os 00, 00-X e 00-0 e Rua…, n.os 0 e 0, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2398 da freguesia de…, concelho de… e a condenação do Réu a reconhecer tal direito, bem como a entregar-lhe a referida fracção livre de pessoas e bens e a pagar-lhe uma indemnização correspondente a (euro) 1.000,00 mensais, correspondente ao valor de uma renda mensal, desde a data da sua citação, até à efetiva entrega do imóvel.

Alegou para o efeito, e em síntese, ter adquirido a referida fracção no âmbito do processo de insolvência da anterior proprietária, BB, pelo preço de (euro) 340.000,00, montante correspondente à soma de dois mútuos garantidos por duas hipotecas sobre o imóvel, que sucessivamente celebrara com aquela: (euro) 280.000,00 para a aquisição à sociedade P…, Lda., de que a compradora era… e… e, em novo financiamento, (euro) 60.000,00; tais hipotecas encontram-se registadas (ap. 00 de 2008/03/05 e ap. 0000 de 2009/10/06, respectivamente), bem como a aquisição (ap. 0000 de 2015/06/24); a insolvência de BB foi declarada em 9 de Maio de 2014; e a ocupação do imóvel pelo Réu impede a Autora de lhe dar o destino para o qual o adquiriu, isto é, vendê-lo ou arrendá-lo.

O Réu contestou, invocando ser arrendatário da fracção, na qual reside, por contrato celebrado com BB em 1 de Outubro de 2011, pelo prazo de dez anos e pela renda mensal de (euro) 300,00, sendo que a Autora, a ter o direito que invoca, age abusivamente, uma vez que sempre teve conhecimento de que o Réu era o seu arrendatário tendo sempre aceitado os pagamentos das rendas que, a partir de Maio de 2015, passou a depositar à sua ordem.

Na audiência prévia, a Autora respondeu às excepções suscitadas na contestação e pediu a condenação do Réu como litigante de má fé.

Foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, com o reconhecimento do direito de propriedade da Autora e a condenação do Réu a entregar-lhe de imediato a fracção, livre de pessoas e bens, bem como no pagamento da quantia de (euro) 9,956,21, relativa ao período de 17 de maio de 2016 a 17 de Abril de 2017, acrescida de (euro) 905,11, por cada mês que perdure a ocupação feita pelo Réu, contada desde 18 de Abril de 2017, até à data da efectiva entrega, tendo sido ainda o Réu condenado como litigante de má fé em multa no valor de 10 UC’s e em indemnização a fixar, e absolvido do demais peticionado.

Inconformado, o Réu interpôs recurso de Apelação, recurso esse que veio a ser julgado improcedente, com a manutenção da sentença recorrida, embora tenha sido alterada a fundamentação de facto.

Irresignado, o Réu recorreu de Revista excepcional, a qual veio a ser admitida por Acórdão da Formação.

No Acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 27 de Novembro de 2018, proferido a 27 de Novembro de 2018, foi produzida a seguinte decisão:

«[a)] Conceder provimento à revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que condenou o Réu AA a entregar imediatamente à Autora a fracção autónoma acima indicada no ponto 1. dos factos provados, livre de pessoas e bens, e a pagar-lhe a indemnização pela ocupação dessa fracção, absolvendo-o desses pedidos.

b) Não conhecer do objecto da revista no tocante à condenação do Réu como litigante da má fé.»

Notificada de tal Aresto, veio a Autora interpor recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos do disposto no artigo 688.º do CPCivil, invocando contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2015, produzido no processo n.º 430/11.2TBEVR-Q.E1.S1, cuja cópia certificada fez juntar, quanto à questão de saber se com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respectivo locatário, nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do CC.

A Autora apresentou o seguinte acervo conclusivo:

A) Com o presente recurso, pretende a Recorrente ver suprimida a divergência jurisprudencial existente no Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que existem decisões diametralmente opostas quanto ao thema decidendum;

B) Nesse sentido dispõe o n.º 1 do artigo 688.º do CPC, que as partes podem recorrer para o pleno das secções cíveis, quando o STJ proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito;

C) A divergência dos acórdãos sub judice versa sobre a interpretação do n.º 2 do artigo 824.º do CC, aplicável por analogia, no sentido de que o contrato de arrendamento caduca com a venda executiva, uma vez que este constituí uma forma de ónus sobre o imóvel, limitador do direito de propriedade, garantido através da hipoteca anteriormente constituída e registada, tornando-se inoponível ao adquirente;

D) Neste sentido o notável Acórdão Fundamento, que ora se junta para legitimar o presente recurso e que correu termos sob o processo 430/11.2TBEVR- Q.E1.S1, de 09/07/2015, da 6.ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça;

E) Ao invés, o douto Acórdão Recorrido que sustenta a tese obrigacionista da Doutrina, onde o direito do arrendatário, é um direito pessoal de gozo e, enveredando pela natureza meramente creditícia ou obrigacional do direito do arrendatário, concluem que não é de aplicar o n.º 2 do artigo 824.º do CC ao arrendamento;

F) Acrescentando que não poderá tal artigo ser aplicado analogicamente perfilhando a tese de Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, 2.ª edição, páginas 52 e ss;

G) A aclaração deste tema é manifestamente necessária para uma melhor aplicação do direito e certeza jurídica dos intervenientes entre estes dois institutos que são o arrendamento e a hipoteca;

H) A Recorrente perfilha a tese e entendimento do Recurso Fundamento, aliás da Doutrina e Jurisprudência maioritária, considerando a decisão do Recurso ora Recorrido violadora do direito da propriedade, considerando o arrendamento um verdadeiro ónus, uma vez que limita a disponibilidade do proprietário devido ao seu carácter vinculístico, impondo-se, portanto, a sua submissão ao regime do artigo 824.º n.º 2 do CC,

I) Ademais «A interpretação dada ao n.º 2 do art. 824.º do Código Civil no sentido de que o mesmo abrange também o contrato do arrendamento, é a que melhor responde às exigências de justiça e aos interesses teleológicos nele subjacentes, na medida em que assegura um equilíbrio adequado e proporcional entre os vários interesses em jogo: o interesse do proprietário do bem hipotecado, em celebrar o contrato de arrendamento; o interesse do arrendatário, que sabe ou pode saber pela publicidade registral que o bem objeto do arrendamento está sujeito à execução e o interesse do credor hipotecário, que não vê o bem hipotecado sofrer desvalorização em consequência do arrendamento», in www.dgsi.pt, processo 12/14.7TBEPS-A.G1.S2.

J) Posto isto, permitimo-nos concluir que o notável Acórdão Fundamento, faz uma correcta interpretação jurídica da aplicação do n.º 2 do artigo 824.º do CC aos contratos de arrendamento, orientação que, de há vários anos a esta parte, se vem sedimentando de forma praticamente unânime no sistema jurisprudencial português, e a qual perfilhamos.

K) Inequivocamente, deverá o Acórdão Fundamento, figurar como pedra basilar para uniformizar jurisprudência no sentido de que com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respectivo locatário, nos termos do n.º 2 do art. 824.º do CC.

Foram apresentadas contra alegações pelo Réu, aqui Recorrido, onde se concluiu:

1) A interpretação dada à lei pela jurisprudência, pretendendo-se que seja homogénea e coerente, não pode deixar de acompanhar, não só a evolução legal dos institutos jurídicos que se interpretam, como o enquadramento jurídico-social a cada tempo, como, ainda, os interesses em jogo e de relevo.

2) O cuidado e tratamento que foi dado ao arrendamento andou no sentido de o fazer evoluir de um ónus sobre os imóveis para um instrumento de investimento e de melhoria no rendimento imobiliário.

3) De facto, é patente a evolução da lei do arrendamento que, – de novo com interesse para o presente caso – aliada à proliferação e actualização de diplomas legislativos específicos (tais como Novo Regime do Arrendamento Urbano e, mais recentemente, a Lei n.º 12/2019 e a Lei n.º 13/2019, ambas de 12 de fevereiro, afasta a necessidade de interpretação extensiva ou analógica do Código Civil, como muito clara e iluminadamente o Supremo Tribunal de Justiça manifestou no Acórdão ora recorrido.

4) É manifesto que numa perspectiva global mais capitalista do mundo e da sociedade, a interpretação jurisprudencial tenderá sempre para a protecção das fontes de capital como objecto de mais cuidada justiça e de alguma sobrepujança sobre o aspecto social global, entendendo-se que uma sociedade economicamente mais saudável cuidará melhor dos seus membros, cuidando-se mais, neste ambiente, do carácter económico das relações jurídicas do que do seu carácter social.

5) Por contraposição, na perspectiva global mais social, o entendimento será tendencialmente o oposto, prevalecendo o interesse da protecção social e de que o direito deverá cuidar mais das pessoas do que do sistema, o que levará a um pendor jurisprudencial mais leniente e protetor dos indivíduos do que das instituições, por se considerar a sua fragilidade perante aquelas.

6) Deste modo, e conforme é exactamente a posição de ambas as partes dos presentes autos (a Recorrente um banco e o Recorrido um indivíduo), o banco puxará sempre à interpretação jurisprudencial que o favorece e, de seu turno, o indivíduo procurará a protecção do interesse social e individual.

7) Na uniformização de jurisprudência, não se trata de «contar armas» mas antes, perspectivamente, de ler a lei e o mundo por forma a que a uniformização de jurisprudência não seja iníqua e injusta, cumprindo-se assim, um dos mais emblemáticos desígnios do labor jurisprudencial do Tribunal Supremo da Nação.

8) O acórdão recorrido, não se encontrando desacompanhado jurisprudencialmente, interpreta a lei e o mundo a que a mesma se aplica de forma correcta e que deve merecer provimento de uniformização.

9) Dar ao credor hipotecário o privilégio de impedir a administração do bem pelo proprietário, apenas na perspectiva de algo de mal acontecer e a garantia ter que ser accionada é, seguramente, algo que exorbita o carácter social do direito de crédito e da garantia em questão.

10) Isso representaria pura e simplesmente uma limitação do direito de propriedade que, contraditoriamente, se quer pretender evitar; ao credor quando se dirime inoponível a este um contrato de arrendamento prévio à venda ou adjudicação do bem ao credor hipotecário, mas posterior à hipoteca.

11) O argumento acima ganha ainda mais relevância e fundamento quando nos recordamos que, num contrato de arrendamento, estão envolvidos terceiros de boa fé que nada têm que ver com a relação de crédito ou a garantia de um crédito a que o imóvel está adstrito.

12) O que se está a fazer com a interpretação jurisprudencial é prejudicar um instituto jurídico dedicado essencialmente à estabilidade e bem-estar social, que sempre foi protegida pelo Estado de Direito, consubstanciada, in casu, no direito à habitação por via do arrendamento, direito este muito mais relevante social, política e economicamente que o direito de crédito dos bancos que o usam para mero exercício comercial e de prossecução de lucro.

13) Sendo acto de mera administração, o arrendamento, como direito obrigacional por natureza, não implica uma limitação, mas sim, ao contrário, uma vantagem de que o bem produz um rendimento, não uma despesa com manutenção, ou uma falta de rendimento.

14) O que acima se disse é ainda mais patente quando facilmente se comprova que, nos nossos dias, estes imóveis têm uma procura acrescida, e neste aspecto, há que atender em concreto ao facto de um imóvel poder e ser normalmente uma fonte de rendimento, para além do seu carácter residencial ou habitacional próprio.

15) É hodiernamente reconhecido, até por instâncias internacionais financeiras, como uma excelente opção de investimento, que, aliás, mesmo pelo próprio Autor é adoptado como medida de sã gestão no meio do descalabro de reaquisições de imóveis que tem ocorrido com esta crise da qual o mundo está apenas a sair, e que tem inundado as entidades bancárias com carteiras de imobiliário que, expeditamente despacha para fundos autónomos que se dedicam a rentabilizar os imóveis, nomeadamente arrendando-os.

16) É, por isso, totalmente anacrónico e conclusivo defender que o facto de um imóvel ter um contrato de arrendamento seja uma limitação ao direito de propriedade ou ao livre exercício da mesma.

17) O arrendamento pode e deve, nas presentes circunstâncias de facto e de direito, ser oposto ao adquirente.

18) E isto por várias razões: uma, de carácter social, dado que seria abrir a porta à destruição do carácter social do arrendamento e dar-lhe um carácter transitório, porque dependente de uma qualquer hipoteca, cuja álea, inerente ao risco do contrato de mútuo bancário ser, ou não, incumprido, determinaria a jusante, aquando da venda judicial em execução, a caducidade do contrato e já não as causas típicas (de tipologia fechada, diga-se) previstas para tal fim pelo Regime do Arrendamento Urbano, o Código Civil e o Novo Regime do Arrendamento Urbano, fim esse que, neste caso, a caducidade viola frontalmente em espírito e de facto.

19) A assumir-se a posição doutrinária e jurisprudencial plasmada no Acórdão Fundamento, dado o vastíssimo número de prédios hipotecados no nosso país, necessariamente levará, por este caminho, a que o mercado de arrendamento seja reduzido a uma expressão ínfima.

20) A outra, segunda, uma razão legal: não é o que a lei pretende ou sequer permite com a sua letra presentemente, dado o regime do Arrendamento e locação e o disposto no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil que, bem ao contrário do que o tribunal entende, não deixam na sua regulamentação algum vazio que exija uma interpretação extensiva ou analógica (a qual se aproxima bastante de uma integração de lacuna, fora dos limites consentidos pelo art. 10.º do Código Civil) como a vaticinada pelo Acórdão Fundamento.

21) Nesta questão de direito que essencialmente se prende com a interpretação e a existência, ou não de uma lacuna no regime legal que determine uma interpretação extensiva e/ou analógica da lei colhe, da melhor jurisprudência e doutrina, uma interpretação sistemática das normas (a qual tem verdadeiramente em conta a «unidade do sistema jurídico» preconizada no art. 9.º, n.º 1 do Código Civil) em causa e até as regras da interpretação teleológica – não se podendo olvidar que todo o intérprete tem o dever de presumir «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (cf. art. 9.º, n.º 3 do mesmo diploma) concorrem para a manutenção – e não para a caducidade – do contrato de arrendamento, sucedendo o credor hipotecário na posição de senhorio, nos termos do artigo 1057.º do Código Civil ex vi o art.s 109.º, n.º 3 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.

22) Nesta específica esfera da insolvência, inexistem quaisquer fundamentos para declarar a caducidade do contrato de arrendamento em causa aquando de uma venda judicial, sendo este ainda mais um facto interpretativo que compele a que a decisão de declaração de caducidade seja a menos equilibrada, não devendo ser adoptada como interpretação aceitável do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.

23) Conforme até já decidido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18-12-2013, n.º 01756/13, mesmo nos casos em que considere o arrendamento como um ónus ou limitação da coisa (o que não se concede e apenas se coloca academicamente e por mero dever de cautela de patrocínio), uma solução que conclua que o contrato de arrendamento confere ao locatário um direito real, seria inconciliável com a nulidade da cláusula que proíbe o dono de onerar os bens hipotecados (artigo 695.º do CC.), sendo que também não se compreenderia o direito de preferência atribuído ao arrendatário na venda do local arrendado (cf. artigo 1091.º C. Civil), nem a obrigação de inserir no anúncio da venda do imóvel a existência do arrendamento por ser limitadora, de regra, do potencial valor do mesmo.

24) Conclui-se portanto que o contrato de arrendamento não confere ao locatário um direito real, mas apenas um direito de crédito, ou seja o contrato de arrendamento é de natureza obrigacional, e assim, a letra do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil não abrange os contratos de arrendamento, porque, na verdade não ocorre qualquer lacuna legal que permita ou implique tal interpretação da norma, sendo esta, no mínimo, desconforme com o sentido literal e teleologicamente inadequada, implicando uma «apropriação» do poder de determinar o critério de aplicação de uma disposição legal – e, portanto, da solução do caso – que cabe ao legislador e, constitui uma violação do princípio da separação de poderes e do dever de obediência à lei que os tribunais estão sujeitos, violando os artigos 2.º, 111.º, n.º l, 203.º e 204.º da CRP.

25) Conforme impressivamente disposto no acórdão recorrido:

«[A] parte da doutrina que sustenta a natureza real do arrendamento (direito real de gozo) (teoria realista), fá-lo pela constatação dos poderes de que o arrendatário fica investido: em especial, o gozo do prédio (artigos 1022.º e 1031.º do CC), a subsistência do arrendamento independentemente da transmissão da propriedade do prédio (artigo 1057.º do CC), e a possibilidade de defesa possessória por parte do arrendatário, contra quaisquer pessoas (artigo 1037.º, n.º 2, do CC). Onde se descortinam sinais de ‘realidade’.

Ora, se o arrendatário tem poderes com esta consistência, que, segundo aqueles autores, quase configuram direito de sequela, não se compreende que tal direito caduque com a venda em praça do prédio arrendado, tão só porque o arrematante é o exequente com hipoteca sobre o prédio, registada em data anterior ao arrendamento.

[…]

Porque se tal concepção se aplicar […] ela deveria conduzir precisamente ao resultado inverso, devia conduzir ao reforço e não à fragilização da posição do arrendatário: não à caducidade do arrendamento, mas à sua manutenção […]».

26) As disposições que concedem ao locatário tratamento jurídico análogo ao dos direitos reais são raras e de natureza incontestavelmente excepcional, não podendo ser submetidas a integração analógica, nos termos do art. 11.º do Código Civil.

27) Não parece ser coerente defender-se que as equiparações legais, dada a natureza proeminentemente pessoal do direito do locatário, só se aplicam porque há disposição a concedê-las e, depois, admitir-se um tratamento real para casos omissos do regime legal locatício.

28) A ratio legis do n.º 2 do art. 824.º do Código Civil em causa é assegurar que o valor do bem vendido em execução judicial, pelo facto de sobre o mesmo incidirem direitos reais, não sofrerá uma significativa desvalorização ou depreciação em prejuízo dos credores.

29) Todavia a hipoteca, apesar de ser uma garantia real que acompanha o imóvel sobre que incide, não impede o titular desse imóvel de o alienar ou de o onerar, como resulta nitidamente do dispositivo do artigo 695.º do CC.

30) Como se obtempera no acórdão deste STJ de 27.03.2007, se se tornar insuficiente a segurança da obrigação, tem o credor o direito de exigir que o devedor a substitua ou reforce, e, não o fazendo, pode o credor exigir o imediato cumprimento da obrigação, ou tratando-se de obrigação futura, registar hipoteca sobre outros bens do devedor, nos termos do artigo 701.º, n.º 1, do CC. «E, por outro lado, não parece de afastar a possibilidade de exercer acção pauliana contra o devedor que onerar com arrendamento o prédio objecto da garantia, verificando-se os respectivos requisitos (artigo 610.º e seguintes do CC)».

31) Acresce a tudo isto que o regime vinculístico, característico do arrendamento, especialmente do urbano e mais especificamente do comercial (que é o caso dos presentes autos, em que o arrendamento é habitacional), tem vindo a estiolar-se nas últimas alterações legislativas.

32) Acresce também que a regressão das medidas protecionistas em benefício de uma maior liberalização no mercado de arrendamento, traduzida na abolição do princípio da renovação do contrato de arrendamento e no esbatimento da política de bloqueio das rendas, permitiu a atribuição de poderes mais amplos ao locador para proceder à denúncia do arrendamento (sendo, em consequência, menor o nível de desvalorização que a subsistência do arrendamento produz para o valor da venda do imóvel na acção executiva), e, por outro lado, abriu espaço à criação de um adequado regime de actualização do valor das rendas, indexando o valor destas ao índice de preços do consumidor, evitando assim a sua depreciação.

33) No actual contexto legal, o arrendamento de um imóvel não constitui, sem mais, um factor de desvalorização do mesmo, ou seja, não constitui necessariamente um ónus, com o sentido pretendido, nem constitui um obstáculo à satisfação integral do crédito garantido.

34) No caso concreto, a Autora sabia, à data da venda judicial, que o imóvel que servia de garantia ao mútuo que concedera à anterior proprietária, se encontrava arrendado – v. ponto 23. Dos factos provados.

35) Assim, conclui-se que o artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil não se aplica, nem directa nem analogicamente, ao arrendamento, devendo ser uniformizada a jurisprudência nesses termos.

O recurso para uniformização de jurisprudência veio a ser admitido liminarmente, nos termos do artigo 692.º, n.º 5 do CPCivil, tendo-se entendido, além do mais, encontrar-se perfeitamente identificada a questão fundamental de direito a dilucidar que em ambos os acórdãos foi decidida contraditoriamente, no domínio da mesma legislação, isto é, a de saber se a venda judicial faz caducar o contrato de arrendamento do imóvel, com hipoteca registada em data anterior, nos termos do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, concluindo-se afirmativamente no Acórdão aqui impugnado e contrariamente no Acórdão fundamento.